Irmãzinha
Pensei muito no que me disse
lembra? falávamos sobre a minha falta de forma
de prudência
Com metáforas antigas
você afirmou serenamente:
o mundo lá fora é mesmo uma
floresta
se não nos protegemos
se não nos concentramos
ele nos traga
Então eu repliquei
querendo aprender a me fechar:
de que sinal eu posso me valer
já que o da cruz é para mim ineficaz?
Nessa altura pairava em minha mente
uma desagradável contingência:
era São Paulo, 2004
e nada era certo
Temi que essa impertinente
viesse bicar
a confortante cúpula que me envolvia
e fortificava
Sem dúvida, pensei
São Paulo é bem uma floresta
E esta nossa luta
Uma coisa primitiva --
Que mal há em nos precaver
e buscar um justo auxílio
nas fábulas eternais?
Não foi isto o que disse
um fino homem da Academia
leitor de Winnicott e Bion –
você é um animalzinho sem pele
e o mundo de que fala é mesmo
uma floresta – ?
Está claro que ele o faz
porque os conceitos, como a morte
são das coisas mais frias
Animalzinho, mundo e floresta –
é uma história que entendo
e em que me agasalho
Assim foi para mim
nossa conversa, irmãzinha
E neste ponto acrescento
embora receie
espicaçar a reflexão
com realidade mais turva –
a da televisão:
o argumento da Bispa ardente
Deus é uma coisa quentinha
não é mesmo muito bom?
Não malqueira minha ironia –
ela tem parte com o mundo
suas garrinhas são como perguntas:
oh mares, oh rochedos
não vistes minha irmãzinha?
2.
Tão completos
tão completos estivemos um dia
talvez nos recomponha o clima
o vento que alisa
somos um a menos
tão completos estivemos um dia
somos um a menos e o vento que alisa
3.
Sinai
Ele jamais foi conivente;
apenas não via.
Faltava-lhe o sentimento moral.
Tarde as tábuas da lei lhe caíram ante os olhos;
em seu momento mosaico
pôde aquilatar com justeza
seu passado, seu obscurecimento.
Foi quando, ao clarão súbito da verdade antiga,
desviou o semblante cúmplice
como um diabo que se confundisse.
Ele que se divertira tanto e uma tradição ruim perpetuara
com um credo arcaico, de crimes absconsos,
agora compreendia, no fundo de sua alma atribulada,
quanto fizera pelo conluio universal, a trama de ferro
na qual viera parar como um inseto enceguecido.
Jamais se tinha perguntado até então
sobre o destino do trem em que entrara.
Os trilhos do trem! Sim, há os trilhos!, espantava-se.
Por muito que chorasse e sua vida inteira reprovasse,
a cena toda ia no interior do que ele se punha a esquadrinhar,
e aquele maquinismo tão orgânico, cuja pulsação lhe era familiar,
aquele maquinismo --- ah era sua alma mesmo e seu passado!
Comunicava-lhe a matéria tudo quanto o rodeava. Em tudo vislumbrava
uma fisionomia mais íntima,
e isso no sagrado instante em que gozava
de perspectiva distanciada!
A mesma luz que a natureza de sua condição esclarecia --
via-se prisioneiro obscuro, e não, como pensara, alegre conviva –
pouco a pouco o desarmava,
por fim lhe derrubando as animadas mãos que um breve instante
impelira a desenhar muitos, muitos! protestos no ar --
maquinações de um mundo mais sensato.
O ver claro não é motivo para afrouxar, antes para agravar
o ajuizamento que faremos –ó nós,
onde quer que estejamos!
Sabemos bem onde estamos,
também tivemos o momento mosaico.
Vemos claro, claro, claro --isso nos serviu de alguma coisa.
Ajuizemos, pois, com justiça o nosso colega:
Ele é conivente?
Ele continua no trem.
Não há como sair do trem!
Mas ele continua no trem.
Sim, ele é conivente.
Então ele se tornou conivente após receber a lei para a sua glória?
Sim, porque ele insiste no que descobriu ser insensato.
Mas tudo lhe parecia tão íntimo!
De primeiro, tudo lhe parecera estranho.
Ele também não sabe para onde vai o trem.
É muito ruim um homem não saber essas coisas.
Então ele insiste em algo que sabe ser errado?
Ele insiste porque é isso ou morrer. A propósito: por que não morremos?
Por que não morremos?
Já discutimos isso. Decidimos...
Bem, ele se tornou conivente depois da revelação.
Como nós.
Como nós.
Ver claro deve ser de alguma ajuda.
Também acredito. Porque a qualquer hora...
A baleia vai abrir a boca.
E saberemos que ela abriu a boca.
Saber essas coisas não nos livrou de um julgamento mais duro.
Não há razão para ser diferente com ele.
Nota: Poemas do livro inédito Mateus de Priscila Figueiredo.
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