14/02/2012

O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios, de Léo Mackellene



Heidegger deixou os rastros de que “Jamais e em nenhuma língua o pronunciado é o dito.”
(HEIDEGGER, 1969, p. 44).


O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios, de Léo Mackellene, trata exatamente desse artifício de amontoar palavras para o estratagema do que mais se aproximaria da verdade: “Só alcançamos as palavras. E as palavras são sombras. A verdade é uma floresta nebulosa, porque a verdade não é a verdade, são palavras. Assim, reinventar o mundo, meu caro poeta, é ressignificar as palavras.” (p.9). O livro passeia pela mata espessa, entre as emboscadas, com a opacidade de quem cose para dentro, interceptando o que é brilhante.
Em súplica de franca natureza, o verso responde que “O mundo inteiro estremece no punho” (p.10) e denuncia o poeta como o responsável pelas mazelas de tudo, haja vista que “O mundo inteiro é culpa de quem imagina/ não de quem vive” (p.11). A trama dessa obra está aquém e abaixo da forma e das fôrmas, no cultivo em perfil denso de nascimentos. O trabalho dO livro das sombras tem a gravidade e gravidez dos signos em inauguração.


Gota
abre-se
silêncio 
interpelado chão 
avança 
furiosa 
penetrando a terra 
vai rasgando o chão [...] 


A vida fervilha em seiva. Uma flor borbulha pétalas. Ouve a respiração ofegante das folhas donde soa em ebulição o silêncio. - Um cardume de mãos Invisíveis se move dia e noite semeando suas sementes. (p.16). Assim Léo arquiteta um livro-casa que abriga as correntes do inconsciente pessoal, das profundidades que reinventam o mundo, onde se encontram as ligações que fazem parte das raízes de tudo o que se é e do que se manifesta. 
Entretanto, seu trajeto é reverso; o caminho é todo árvore em sussurro. Este “é o destino dos homens// (Raízes nos habitam)” (p.18). Mais que a coisa, busca-se sua sombra. No poema “O caminho das árvores”, percebe-se a bela metáfora da mulher-árvore. Toda feminilidade é alcançada em versos de uma sensualidade rica e apurada. Avança lenta e cautelosa sob o peso de seus galhos e seus ramos vestida de flores e sua pele de folhas. Avança pela intimidade dos caminhos. [...]Ela percebe? Percebe! Percebe! É bonita demais pra não perceber insinuações. Para mulheres assim, o mundo é inteiro uma insinuação. (pp.18-9). 
Assim que a trilha à leitura dO livro das sombras vai sendo inventada em plena desarmonia da natureza pa[lavrada]: “a mulher é uma árvore que renasce.// A verdade não é o que existe,/ é o que a gente deixa existir.” (p.19). Na mesma medida, a concepção das novas verdades e dos significados estão em gestação, arvoradas de sentidos a serem inaugurados. Fetos afetados no útero do universo. As mulheres carregam sementes no ventre. Vem das suas certezas a altivez com que me aplaca o juízo. E da alma inquebrantável de verdades a completude com que me atrai os sentidos. Ela traz a segurança das mulheres grávidas das mulheres prenhes da verdade. A verdade o estágio mais alto de toda beleza.(p.19). As raízes de uma árvore não são fáceis de perceber; contudo, são imperativas à sobrevivência da mesma. 
Também essa é a proposta dos pequenos silêncios de Léo Mackellene, em sua obra que prepara um terreno abrigado da palavra. Em “O jardim das horas”, Dois deuses acima de nós disputam o controle de nossos atos o destino e o acaso. (p.29) o que se percebe é a ida ao encontro do silêncio ao desvendamento do que ainda não foi re-velado. O oculto das coisas está nessa sacralidade silenciosa que é a verdade. A des-coberta acontece em sigilo; é na refração que se pode alcançar. 
Ler... É uma árvore que desperta, respira profundamente e se ergue. Deixa que a palavra te leve, que ela é um barco que navega sem leme. (p.32). O silêncio esculpe a palavra; o auge do silêncio é a transcendência do tempo: “Pois entra e senta/ que o mundo é secular e ele pesa./ Diz como quem tem fome./ Pára...” (p.33). Fabulando as significações é que as palavras excursionam “O jardim silenciado”, atuando em processo metafísico, com a ciência de serem reflexo. Eu sou o último galho o que sobrou... e aqui estou sob a sombra dessas árvores e dessas plantas entre as dobras dessas páginas brancas, vivendo secretamente em ti. (p.46). Aqui se dá o esfacelamento do ser, enfraquecido de saber-se perecível. Vestígio humilde de certificar-se abaixo da sombra das palavras que não alcançam a verdade, mas, incansavelmente, procuram-na: “Aqui,/ um segundo/ é a eternidade doendo.” (p.47). 
O poema que encerra O livro das sombras é “O quintal dos dias”, o terreno atrás da casa-livro, em que se operam as oportunidades da linguagem. Léo novamente transubstancia o indivíduo, agora fundindo à árvore a sabedoria humana. Gigantes sábios e benevolentes retiraram-se dos campos - onde havia gente - E embrenharam-se na floresta, Transformados também em árvores. (p.50). Descarnando-se, ou seja, fugindo da solidez do que já está posto, a obra sugere uma reflexão, uma compreensão que se dá além das palavras, em sua virtualidade: “O fruto é uma revolução silenciosa.” (p.50). 
Léo Mackellene empenhou-se com uma destreza assombrosa sobre o que se passa através dO livro das sombras, em confecção íntima e precisa de uma textura sobre a matriz da palavra – o silêncio –, alcançando o que se pretendeu ou se pressentiu construir no enovelado e nodoso versejar grávido de sentidos.



referência:
MACKELLENE, Léo. O livro das sombras ou O livro dos mais pequenos silêncios. Fortaleza: Mangues & Letras, 2006.




sobre o autor: 
Léo Mackellene nasceu em Fortaleza no Marco Zero dos anos 80. Tocou em bandas de rock. Publicou poemas e contos. Saiu de casa aos 11 anos. Morou em cidades diferentes. Amou, se embriagou, chorou. Participou do movimento estudantil e hoje vive como mestre em literatura (UnB) e leciona na Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, na terra de Domingos Olímpio, Sobral. Mantém o blogue http://olivrodosmaispequenossilencios.blogspot.com/


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